Em
meio aos sofás velhos, geladeiras, carcaças de televisão e esgoto que são
jogados no Riacho Salgadinho, se escondem segredos que nenhum maceioense
poderia imaginar. No trecho entre o Viaduto Ib Gatto Falcão até próximo de onde
o riacho deságua no mar, no bairro do Poço, existe vida. Um grupo de cágados
tem sobrevivido imerso a poluição há vários meses. Eles surgem como uma
esperança para aquele local esquecido por tantos anos pelo poder público. Uma
esperança para, quem sabe, uma despoluição.
Os
quelônios têm vivido próximo às margens do Riacho Salgadinho e quase sempre
aparecem em bandos, como qualquer animal silvestre solto em seu habitat. Como é
peculiar à espécie, eles passam algum tempo debaixo da água e de repente
aparecem entre os concretos que estão no entorno do Riacho. Quando não tem
nenhum curioso por perto, os cágados surgem de forma surpreendente e vêm à
superfície com toda sua delicadeza, com o intuito de respirar. Por não serem
animais totalmente aquáticos, se apóiam em pedaços de madeiras, lonas jogadas
no riacho, sofás e plantas que crescem no local. O que mais chama a atenção é
que eles têm conseguido se manter vivos mesmo diante da grande quantidade de
dejeto que é diariamente despejado pelos esgotos da capital de Alagoas.
Poucos foram os que os viram
desfilando pelas águas fétidas e escuras do Riacho. Quem já se deparou com
eles, fica impressionado com a capacidade que esses animais têm de superar a
degradação do meio ambiente e de transformarem sua presença numa luta pela vida.
Como esses cágados foram parar no Salgadinho ainda é uma incógnita, que o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) pretende
desvendar.
Integridade dos animais preocupa moradores da região
A presença dos cágados naquele local
gera espanto. Para quem mora ou trabalha no bairro eles são verdadeiros
moradores ilustres. Apesar de adorados, todos têm grande preocupação com a
saúde e integridade desses animais silvestres. Como circulam livres e são
vulneráveis, podem ser presas fáceis para oportunistas.
Segundo o operador de áudio de uma gráfica que fica
em frente ao Salgadinho, Charles David, de 35 anos, é uma grande surpresa esses
animais conseguirem se manter vivos dentro do Riacho. Ele relata que já flagrou
dezenas de cágados concentrados no mesmo local. “Me disseram uma vez que tinham
vários deles dentro do Riacho, mas eu não acreditei. Fui observando e constatei
que há realmente vários, porém não acredito que o Salgadinho possa ser
despoluído e me preocupo com a presença deles, se estão doentes ou correm
risco”, disse.
Próximo da gráfica, o vigilante Leônio da Silva, 32, também
gosta de observar o Salgadinho. Ele trabalha há três anos bem perto de onde os
cágados costumam emergir e já viu os animais em diversas situações. “Uma vez vi
uns dez amontoados, tentando subir a parede de concreto, e fiquei impressionado
com a presença deles nessa água tão poluída e fedida. Outro dia a maré subiu
muito e o Riacho transbordou, daí alguns atravessaram a rua e subiram a
calçada, outros foram atropelados por veículos que passavam na avenida. Acho
que eles correm risco”, relatou.
A presença dos animais ainda é desconhecida por muita gente.
Alguns, quando são contados que eles existem no Salgadinho, custam a acreditar
na novidade. Uma delas é a moradora do bairro Maria Luiza, de 57
anos. “Nunca tinha visto animal nesse riacho. Foi uma grande surpresa. Acredito
que com essa descoberta as pessoas se eduquem. Um dia ele foi limpo e mostra
que tem chances de conseguir viver novamente”, falou.
Cágados podem representar risco
para a saúde do homem
Quem
olha os animais tranquilos tomando sol ou respirando dentro do Salgadinho não
imagina o risco que representam para a saúde do homem. A presença deles é
realmente algo novo e que vai precisar ser estudado. Entre as dúvidas, está o
tipo exato de espécie que eles são. Para tentar desvendar uma dessas
incógnitas, a equipe de O
Dia Mais entrou em contato e foi até o local com especialista
em animais silvestres, o médico veterinário Isaac Albuquerque, que fez uma
rápida avaliação dos bichos.
De
acordo com o especialista, existem fortes características de que se trata de
cágado-cabeçudo (Bufocephala vanderhaegei) ou de barbicha (Phrynops
geoffroanus). “Esses répteis sobrevivem tranquilamente durante 40, 50 anos no
Riacho Salgadinho por conta do grande número de material orgânico que serve de
alimentação de pequenos invertebrados, os quais são consumidos pelos cágados.
Geralmente vivem em bando”, explicou. “O processo de reprodução é
lento, pois os cágados necessitam de locais secos para a postura dos ovos, que
ocorre no período entre novembro e fevereiro. Diante de toda situação, muito
provavelmente apenas metade dos cágados filhotes irão sobreviver devido à
poluição, por serem mais frágeis e terem pouca imunidade”.
Uma
das grandes preocupações do veterinário em relação à presença dos
quelônios é o risco que eles representam para a saúde do homem. Os cágados
podem ser vetores de patologias e parasitas. Além disso, por consumirem muitos
metais pesados como o chumbo e o selênio provenientes do lixo jogado no Riacho
Salgadinho, não devem ser consumidos pelas pessoas. “É bem provável que estes
animais possuam um alto índice de metais pesados em suas vísceras e musculatura
e contaminarão as pessoas que venham a se alimentar deles”, destacou o
veterinário.
Albuquerque
sugere que estes animais sejam resgatados e encaminhados a um local adequado
após período de quarentena. Para isso, se faz necessário uma licença frente ao
Sistema SISBio, no site do Ibama, que deve ser protocolada junto com um projeto
no órgão ambiental estadual, o Instituto do Meio Ambiente (IMA). Após execução
do projeto, dentro dos trâmites legais, o órgão ambiental destina os animais a
um local para sua reintrodução.
Crime
ambiental
O
especialista ressalta, ainda, que os cágados não podem ser capturados, nem
retirados do local por pessoas que estejam com pena da presença deles nas águas
sujas. Esse ato é crime previsto na Lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, que
trata de Crimes Ambientais e determina sanções penais e administrativas
decorrentes de condutas que prejudiquem o meio ambiente.
“É
proibida a captura, guarda, abate e o transporte destes animais. Para
retirá-los do local, é preciso ter uma licença. Instituições que queiram
estudá-los devem conseguir a licença, se cadastrar no SISBio dentro do site do
IBAMA, inscrever o projeto e protocolar o documento em um órgão estadual para
arcar com as despesas desse projeto. Na execução, dentro dos trâmites legais, o
órgão ambiental destina uma área para a reintrodução desses animais após a
quarentena”, completa Isaac Albuquerque.
Presença de cágados gera surpresa
em órgão ambiental
O
espanto em torno da aparição de vida nas águas fétidas e sujas do Riacho
Salgadinho também atinge os órgãos ambientais de Alagoas. Para o
superintendente regional do Ibama, Mário Daniel, que é biólogo, essa é uma
descoberta um tanto estranha, já que se trata de uma água bastante suja para
abrigar qualquer tipo de animal.
“Busquei
informações se alguém já tinha sido comunicado sobre o Riacho Salgadinho estar
servindo de abrigo para cágados e ninguém confirmou essa informação. Acredito
que nunca recebemos qualquer informação deste tipo. É uma verdadeira surpresa,
que devemos analisar e estudar, para tentar entender o que aconteceu e de onde
esses animais surgiram”, afirmou Mário Daniel.
Os
cuidados com a fauna no Estado são feitos através de uma gestão compartilhada
entre Ibama e o IMA, este último responsável por atuar de forma mais efetiva na
proteção desse bem da natureza. “Vamos comunicar ao IMA, para que juntos
possamos fazer esse levantamento e analisar os animais encontrados no Riacho
Salgadinho. O que recomendamos hoje é que ninguém tente capturar esses
quelônios, já que eles estão num ambiente altamente poluído e podem passar
doenças para quem tiver contato com eles. As águas do Salgadinho são
praticamente um grande esgoto, então imagina o que eles não devem carregar”,
orienta.
Para
analisar os animais, o Ibama pretende, junto com os técnicos do IMA, capturar
alguns deles e levá-los ao Centro de Triagem de Animais Silvestres (CETAS) para
que eles possam ser estudados. “Precisamos saber qual a espécie deles, se se
trata animal exótico ou nativo, e qual o grau de poluição que os atingiu. A
partir daí, iremos saber como foram parar no Salgadinho e para isso, vamos
trabalhar com a teoria de alguém que jogou no Riacho para se livrar do animal e
ele acabou procriando ou, se for nativo, com a possibilidade de nas últimas
cheias eles terem sido arrastados da nascente”, completou Mário Daniel.
Diferente
do Ibama, o Instituto Biota, que é conhecido pelo trabalho desenvolvido no
resgate de animais marinhos, em especial tartarugas, já havia sido informado
sobre a presença dos cágados no Salgadinho. De acordo com o diretor executivo
da ONG, o biólogo Bruno Stefanis, eles já receberam várias denúncias e pedidos
para retirar os animais do local, só que não é competência deles. “Nossa
relação é com as tartarugas marinhas, os cuidados e os resgates. Jamais as tartarugas
marinhas sobreviveriam neste Riacho devido ao alto índice de poluição. No mar
já sobrevivem com certa dificuldade por conta do lixo que é jogado”, explica.
Especialista em Recursos Hídricos
acredita que limpeza do Salgadinho está ligada a saneamento básico
Contando
da presença dos cágados, ninguém acredita. A reação do que foi dito sobre eles
é sem dúvida de espanto e surpresa. E não foi diferente com o coordenador do
mestrado em Recursos Hídricos e Saneamento da Universidade Federal de Alagoas
(UFAL) e estudioso do Riacho Salgadinho, Marllus Neves. “É incrível que tenham
animais sobrevivendo no Riacho. Hoje, ele é composto em sua maior parte por
esgoto. Tudo que escorre da parte alta da cidade, da região do Canãa, Ouro
Preto, Feitosa, Pitanguinha, vai parar no Riacho e imagine que nessas regiões
não tem saneamento. O que sobra para as águas do Salgadinho é poluição”, disse.
Segundo
Marllus Neves, a presença dos animais gera uma esperança para o futuro do
Riacho. “Existem muitos modelos em outros países e até mesmo aqui no Brasil,
que rios tão poluídos quanto o Salgadinho são recuperados. Para mim, é preciso
que seja feito um grande trabalho de saneamento, recuperação das nascentes para
ele ressurgir. Ter vida nele mostra esperança”.
A
presença dos animais relembra um período antigo, do início do século XX, que
hoje são apenas lembrados em imagens antigas e nos relatos de pesquisadores,
como o ambientalista Octávio Brandão, que tanto relatou os tempos áureos de um
dos principais rios que cortavam a capital. No passado, ele foi conhecido com
rio da integração de Maceió, tinha vasta vida marinha e água límpida. Sua
história está totalmente ligada ao início da capital, inclusive ao seu nome, já
que ele era conhecido como Maçayó.
“Por
muitos anos, a bacia hidrográfica do Reginaldo sofreu com a degradação do
homem. Houve o crescimento populacional nas áreas que ficam próximas à nascente
e tudo foi se perdendo. Teve ainda o desmatamento da vegetação nativa, a
impermeabilização do solo e o uso indiscriminado das fontes de água que
contribuíram para a situação atual. O Riacho sempre teve vital importância para
a cidade, mas infelizmente ele deixou de ser um lugar onde as pessoas convivem
e têm lazer, para ser o local onde a sujeira é despejada”, ressaltou Marllus
Neves.
Qual será o futuro do Salgadinho?
No
último mês de março, o assunto despoluição do Riacho Salgadinho voltou a ser
tema de reuniões entre representantes da Prefeitura de Maceió e promotores do
Ministério Público Estadual (MPE). Eles iniciaram uma força-tarefa que pretende
recuperar o Riacho Salgadinho. Esta não é a primeira vez que gestões municipais
buscam ações para minimizar os impactos da degradação no local, mas a maioria
nunca saiu do papel.
Por
anos, o Salgadinho foi esquecido e deixado de lado. Agora, o município pretende
realizar a recuperação com a limpeza do Riacho e o Projeto Jardins Filtrantes,
que visa recuperar toda a bacia hidrográfica do Vale do Reginaldo, valorizando
paisagística e socialmente as margens do Salgadinho, no trecho de dois
quilômetros lineares.
Segundo
informações do site da Prefeitura de Maceió, o projeto deve construir um Jardim
Filtrante em escala piloto para tratamento inicial de uma pequena vazão do
Riacho de forma a verificar a eficiência deste tipo de tratamento para as
condições específicas do local. Enquanto isso não sai do papel, a
Superintendência de Limpeza Urbana de Maceió (Slum) estaria realizando a
limpeza mecanizada do Riacho com uma escavadeira hidráulica, para diminuir os
bancos de areia e retirar o lixo encontrado no Salgadinho.
Matéria: Deisy Nascimento e Láyra Santa Rosa
Fotos: Deisy Nascimento
Fonte: odiamais.com.br
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